terça-feira, 24 de abril de 2012

Vénus entre o Amor e a Guerra


A Estrela, Tarot de Oswald Wirth
O brilhante planeta Vénus pode aparecer-nos como Estrela da Manhã (surgindo no céu matinal antes do nascer do Sol) ou como estrela vespertina (junto do Sol quando este se põe). Após uma conjunção inferior (quando está entre a Terra e o Sol, em movimento aparentemente retrógrado), Vénus emerge como estrela matutina, voltando ao movimento directo durante 263 dias; depois, viaja por detrás do Sol durante 50 dias, executa uma conjunção superior (quando está escondida pelo Sol) e surge como estrela da tarde, permanecendo assim por outros 263 dias. Desaparece então durante cerca de uma semana, enquanto passa diante do Sol, cujo brilho a oculta, e repete todo o ciclo.

Vénus é avistada desde o final do ano passado como estrela vespertina, mas a 15 de maio deste ano iniciará o seu movimento retrógrado (em Gémeos) para atravessar a face do Sol a 6 de junho, diante dos “cornos do Touro”, a constelação onde reingressa antes de voltar ao movimento directo. A partir de meados de Maio será novamente avistada como Estrela da Manhã, e assim irá permanecer até Fevereiro de 2013.

Esta alternância entre o seu aspecto nocturno e o seu aspecto diurno confere ao planeta uma simbólica ambígua, presente na mitologia de diversas civilizações antigas. Vénus foi associada tanto a divindades femininas, como Ísis, Ishtar/Astarte, ou até à Virgem Maria (Estrela da manhã, rogai por nós), como a potestades masculinas.

Na Babilónia, a mudança de posição de Vénus nos céus era vista como um sinal de alteração do seu género, causador de transformações também no mundo (em tais momentos os senhores podiam ser derrubados pelos seus servos). Em toda a Mesopotâmia, a Estrela da Manhã era considerada masculina pela sua associação com a luz, o fogo, o poder, a guerra e as armas (recordando o papel de Ishtar como deusa guerreira), o relâmpago, o dia e o anúncio do Sol, que simbolizava a capacidade de guiar os homens e os espíritos. Vénus, planeta que possui fases semelhantes às da Lua e portanto também exibe um crescente – que é visível, em condições ideais, a olho nu – era também o Touro Celestial da epopeia de Gilgamesh, enviado pela própria Isthar, símbolo da virilidade no reino animal. Já a estrela vespertina era feminina, associada à noite e ao amor, à fertilidade e aos seus mistérios, à velhice, à morte e ao mundo do Além.

Também um hino a Nana ou Innana, manifestação de Isthar, explica que a deusa é sempre a mesma, embora assuma diversas formas:

Inanna … Eu sou a mesma, a sábia filha de Sin, a irmã amada de Shamash [o Sol], eu sou ponderosa em Borsippa, sou prostituta sagrada em Uruk, tenho seios pesados em Daduni, tenho uma barba na Babilónia, mas sou sempre Nana[1].

A “Vénus com barba”, diversas vezes referida em textos antigos, era adorada no Chipre na forma de Afrodito. Num comentário à Eneida de Virgílio, o gramático romano Maurus Servius Honoratus (século IV) afirma:

Existe também no Chipre a estátua de uma Vénus barbuda, com corpo e vestuário de mulher, [mas] com um ceptro e genitais de homem, a que chamam de Afrodito, e à qual os homens prestam culto em trajes femininos, e as mulheres em trajes masculinos.

Estátua de Afrodito
O culto a este Afrodito antecede a figura mítica de Hermafrodito, filho de Hermes (Mercúrio) e de Afrodite (Vénus), divindade menor que possuía seios femininos e genitais masculinos. Curiosamente, o planeta Mercúrio também pode aparecer no céu de manhã ou à noite, embora de forma muito mais discreta que Vénus, e a mesma duplicidade de género da deusa era-lhe atribuída em muitos textos antigos.

Esta duplicidade, que na linguagem astrológica transparece na dupla regência de Vénus, governando a atracção, os relacionamentos, a arte, a beleza, a fecundidade e a prosperidade, mas também as vitórias militares e até a virilidade, pode estar na origem da figura de Eros ou Cupido, o Desejo, um jovem sexualmente maduro (só mais tarde representado como criança) e tido como filho da deusa, cujas setas inflamavam a paixão nos homens. Estas setas serão ainda resquícios daquelas que, lançadas pelos soldados nas batalhas, pertenciam ao domínio das divindades guerreiras relacionadas com a Estrela da Manhã. 

Vénus, também equivalente ao deus Quetzalcoatl, a Serpente Emplumada dos Maias, é ainda hoje uma divindade masculina na Índia – Shukra, O Brilhante, conhecido como preceptor dos demónios, aos quais atrai em direcção à Verdade. No Ocidente este planeta é Lúcifer, o Portador da Luz (do latim Lux fero), a Estrela ou Luz da Manhã citada na Bíblia, que simboliza o Rei da Babilónia e o poderio sobre as nações do mundo. Em Isaías 14:12-15, texto em cuja tradução latina (Vulgata) figura o próprio nome de Lúcifer no lugar da “estrela da manhã”, o profeta parece referir-se à posição matutina do planeta antes do Sol, considerada na antiguidade como um sinal de orgulho ou arrogância (hubris) e castigada com a “queda” do astro na fase vespertina, equivalendo à lamentação de Lúcifer como Anjo Caído (a partir de então identificado com Satanás):

Como caíste dos céus, estrela da manhã, filho da aurora? Como foste abatido por terra,ó dominador das nações? Tu que dizias no teu coração: ‘Subirei aos céus, estabelecerei o meu trono acima das estrelas de Deus, sentar-me-ei na montanha da As­sembleia, na extremidade do céu; subirei acima das nuvens e serei semelhante ao Altíssimo’. Infeliz! Foste precipitado no abismo, no mais profundo do mundo dos mortos!

O carácter dúplice do astro, com uma face masculina e outra feminina, uma benévola e uma maléfica, uma diurna e luminosa e outra nocturna e sombria, reflecte-se também na leitura de uma carta astrológica. Aqueles que nasceram sob uma Vénus matutina (localizada no mapa antes do Sol) têm qualidades venusianas que se expressam de forma positiva e assertiva, enquanto uma Vénus vespertina se expressa de forma mais passiva, embora acentuadamente magnética. Num mapa onde Vénus é a Estrela da Manhã, antecedendo a posição do Sol, os desejos podem ser tão fortes que dominam a pessoa, ou permitem o seu domínio por outros, sendo muitas vezes forçoso encarar as consequências das paixões exacerbadas. Tratando-se da estrela vespertina, as qualidades solares saem vencedoras, e a vontade pode ser usada para dominar e orientar os impulsos venusianos. A tendência aqui é para a sua purificação.

Innana na sua forma masculina, 
com dois touros
De resto, os astrólogos reconhecem a dupla energia do planeta, ainda que o tenham por exclusivamente feminino. É sabido que um trânsito de Vénus não traz sempre harmonia, e que existe uma faceta violenta e “marcial” ao seu alcance. De certa forma, Vénus tem semelhanças com Kali, aspecto feminino de Shiva, senhora da sexualidade e da morte, criadora e destruidora de toda a vida. Por vezes é quase inocente, doce, sedutora e encantadora. Porém, rejeitada, desprezada ou dominada pela paixão, como no encontro com Adónis, Vénus é dominadora, agressivamente sensual, e até vingativa e destruidora. Também ela senhora do amor e da morte, equivale da mesma forma a Inanna, guerreira e prostituta, que sabia unir a agressividade masculina à feminilidade capaz de encontrar e despertar o “ponto mais fraco” do oponente. O seu comportamento pode ser violento, selvagem e erótico, ou pesaroso e contrito.

Mas talvez esta dualidade seja aquilo que permite a Vénus governar os relacionamentos, particularmente aqueles nos quais está mais presente a dualidade dos pólos opostos. São estes, afinal, que se separam na guerra e se unem no amor.


[1] Erica REINER, A Sumero-Akkadian Hymn to Nana, Journal of Near Eastern Studies, 33, 1975

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